Midnight Pub

(Portuguese) A tulipa negra e o propósito

~dsilverz

As sirenes tocaram, evacuar era necessário. Ninguém parecia saber o porquê nem o quê, mas a confusão e o pânico se instauraram na pequena cidade. Uma fina chuva caía, borboletas dançavam entre as gotas, e uma fraca e morna luz solar iluminava o espetáculo natural. Mas os humanos corriam, talvez de si mesmos...

Ninguém sabia me responder quando eu perguntava o porquê, apenas sabiam me criticar pelo questionamento:

- "Você não ouviu? Não há tempo pra respostas, rápido, vamos!"

As pessoas estavam claramente alteradas. Os policiais batiam seus cassetetes nos moradores que já estavam a correr. Alguns policiais até usavam bombas de efeito moral e spray de pimenta. Na cabeça dos policiais, talvez uma mistura de bombas e spray de pimenta fossem o segredo por trás da velocidade de maratonistas como Usain Bolt e The Flash...

Por sorte, eu parecia invisível às autoridades e à população em pânico. Estavam mais preocupados em correr de algo que sequer sabiam dizer o que era. Pois eu não tinha pressa: se fosse algo mortal, não via propósito em fugir da morte, mas se não fosse algo mortal, talvez eu pudesse finalmente encontrar com os demônios amigos da encruzilhada, que estaria finalmente vazia e livre de quaisquer interferências humanas.

Após alguns minutos, o silêncio era o novo governante: não haviam autoridades humanas, não haviam moradores, apenas eu e os poucos espíritos demoníacos que eventualmente visitavam a cidade.

- Satanás? Tu me ouves?

Pude ouvir um leve estalo nos auto-falantes das sirenes. Não soaram novamente, mas é como se tivesse sido desligada da tomada após a loucura da evacuação... ou como se alguém tivesse ativado o microfone, sem falar nada.

Caminhei para fora de casa. A fina chuva deixara a cidade, dando lugar à neblina. Não haviam carros, exceto o meu em minha garagem. Sentia que deveria entrar em meu carro. Voltei para a sala, peguei o molho de chaves, e tornei a caminhar em direção à garagem.

O alarme já estava desativado: estranho, lembro-me claramente de ter ativado o alarme quando cheguei ontem do Dr. Crow. Girei a chave, mas a porta do veículo já estava destrancada, então a abri, sentei-me no banco do motorista e fechei-a novamente, refletindo enquanto olhava para aquele painel desligado. O odômetro marcava exatos 666600 km. Talvez eu tivesse que dirigir por mais 66 km: curiosamente, era a distância até o Antigo Cemitério dos Soldados, conhecido por abrigar os restos mortais dos soldados que lutaram durante a ameaça da Gripe Espanhola.

De relance, minha visão periférica me assustou com algo que notara pelo retrovisor: uma criança sentada no banco de trás. Virei-me com tudo, me deparando com um sorriso simultaneamente fofo e sombrio, olhos inteiramente negros e cabelos que pareciam em chamas.

- Oi Derrick!

Aquela menina falava, e sabia meu nome. Sua voz definitivamente não era de criança, embora tivesse uma tonalidade levemente juvenil.

- Quem é você? - perguntei, retoricamente

- Você sabe. Você chamou ele, mas ele não virá.

- Mas sobre o quê exatamente você está...

- Não se faça de desentendido, Derrick. Por que você chamou ele e não a mim?

- Eu... como assim?

Sua forma física brevemente mudou, como num flash de luz negra, para uma mulher de vestidos vermelhos, para então voltar à forma de criança. Eu não sabia o que dizer.

- Devo ir ao cemitério? - perguntei à ela.

- Talvez haja um lugar melhor.

- E qual seria?

- Olhe pela janela.

Olhei e o carro já não estava mais em minha garagem, e sim no Morro dos Escoteiros, onde o grupo de escoteiros geralmente se reunia para acampar. É um ponto impossível chegar de veículo, sendo necessária uma escalada por corda. Mas meu carro estava ali.

- Legal, meu carro é certamente o primeiro a chegar nesse lugar... os escoteiros chamariam isso de trapaça, se é que acreditariam nessa trapaça... Como depois vamos sair daqui?

- Não vamos. Eu vou, você não vai.

- Justo.

Ela sorriu. Ouvi uma rajada de vento e, quando olhei por reação involuntária, estávamos fora do carro. Na realidade, o carro tinha desaparecido.

- Você tem perguntas, suponho. - ela me disse enquanto despretenciosamente segurava e alisava uma tulipa negra.

- É... não sei, são muitas, muitas coisas aconteceram e...

- As pessoas?

- Isso... talvez seja uma pergunta interessante pra começar... Por que essas pessoas fugiram?

- A resposta está ao seu redor.

Olhei e só via a neblina.

- Uhm... a neblina? - perguntei

- Não é uma neblina.

- Então o que é?

De repente, lembrei-me de ter ouvido uma explosão, antes de todo o ocorrido. E então lembrei-me da fraca luz solar, e então lembrei-me que era noite: não havia luz solar, embora houvesse uma luz que lembrava a iluminação natural. Pude deduzir, sob uma fina sombra de dúvida, o que ocorrera:

- Uma explosão nuclear?

- O que você acha?

- Tá, então... eu morri?

- Isso te espanta?

- Nã... sim, não, sim e não.

- E por que te espanta?

- Não sei... talvez uma existência inteira tentei interagir com demônios invisíveis e agora eu consigo...

- Ver?

- É.

- E por que te espanta?

Eu não sabia responder. Ou sabia, mas estava acanhado demais para fazê-lo.

- Bom... o que será de mim?

- Não será.

- Mas ainda estou...

- Pensando?

- É.

- E isso te incomoda?

- Um pouco... Eu pretendia, sei lá, deixar de existir mesmo.

Houve um breve silêncio enquanto ela ainda estava, numa calma sombria, dedicada àquela tulipa, como que acariciando suas pétalas negras. Eu queria falar alguma coisa, mas não sabia o que falar. Meu corpo -- se é que dá pra chamar assim -- estava claramente inquieto. Ela não parecia nem um pouco incômoda com minha inquietude. Parte de mim achava aquele momento sombriamente belo, e outra parte parecia como aquelas pessoas que corriam durante o toque das sirenes: sem saber o porquê, mas corriam.

- Por que eu penso?

- Isso claramente te incomoda. - ela respondia, me entregando uma das pétalas.

Peguei a pétala, enquanto pude sentir a frieza congelante mas suave de suas mãos.

- É que... não parece ter um propósito... sabe... - eu dizia, num duplo sentido sagaz: sobre o pensar e sobre a pétala que acabara de me entregar

- Há um propósito: não há.

- É, eu... logo imaginava...

Outro silêncio se instalava. Foram vários minutos entre coçar a cabeça e a barba, enquanto alternava entre admirar aquela pétala e admirar ela, tentando mitigar o resquício de medo e horror que eu ainda involuntariamente sentia diante daquela presença.

Sentei-me em uma pedra, próximo ao penhasco, onde via toda a região, lá embaixo, coberta pela neblina, que não era neblina. Guardava comigo aquela pétala, pois nela sentia um propósito, ainda que único: simplesmente ela me entregou... sem um propósito, mas me entregou. Muito embora não sentia-me merecedor dessa entrega... Não sou nada nem ninguém, afinal...

Quando finalmente senti de aceitar permanecer ali sob sua presença, sem um propósito definido, resignado à eternidade condenado a estar livre ali com ela, acordei com o despertador que eu configurara com som de sirene. Fora do quarto, uma fina chuva caía em meio a uma neblina, e uma pétala de tulipa negra repousava sob a janela. Na rua, as pessoas corriam, sem propósito. Talvez houvesse, sim, um único propósito: as pessoas fugiam de si mesmas.